quarta-feira, janeiro 28, 2009

# 043

Mar cheira melancia é tubarão na praia. E se cair, ainda assim, de joelhinho reza: nossa senhora dos navegantes, das candeias, da conceição da praia. Peça a quem já foi e não subiu por não entender canto mar dito. Vá! E não volte, porque eu não sou mãe, imaculada, esposa fiel, refúgio santo, intemerata, consoladora, virgem puríssima, rainha da paz. Do bom conselho. Mas não quer me ouvir, vá ouvir sereia. Tô cheia desse mar nos olhos! E meu cabelo, que não te enxuga mais...  


... desarmou cabelo a mão de peixe e foi de costas pruma pedra. Ao contrário da sereia, que o admira e espera filho, a muita areia sobre o corpo não levanta mais castelo. Refletiu no mar revolto um céu de nuvens e o fio prata entre os dedos lhe explicou o mundo.

terça-feira, janeiro 20, 2009

# 042

"pai-mãe-filho... se o mundo fosse um kibutz que diluíssse essas figuras, a História não seria a mesma" - comentou a atriz, olhando o coral que ganhou como peso de papel

domingo, janeiro 11, 2009

# 041

vaso não sou eu
nem flor, nem água: eu sou
(eu é o vazio)

sexta-feira, janeiro 09, 2009

# 040

Ía chover e o veneno se espalharia pela terra. Desde manhã, o homem com a máscara borrifando os cantos, a descupinizar a casa. Mas precisa pôr no mato? Eles vêm do terreno, senhora. E o quintal era largo, com terra revolvida, largada até onde galinhas ciscavam o milho de ontem. Porque hoje vai ter veneno e não pode ter comida no chão, o menino falava aos bichos, catando os grãos. Não com o macho velho que cantava de galo e atacava com espora, falava às fêmeas e o pintinho que o acompanhava.
Só tinha um sobrevivente. Dos cinco ovos da poedeira, um rolou pelo desnível e apodreceu. Os outros quatro nasceram, mas no desespero da chuva de início do ano, três caíram numa vala que juntava poça. Não sabiam nadar como a pata do Natal, e a galinha mãe, num ato mais automático que o de ciscar, pulou em cima pra proteger. Os pintinhos tentaram ali abrir um guarda-chuva num mesmo movimento, mas escorregaram na lama todos e ela os pisoteou com as patas. Foi tudo num raio, a água encheu e eles transboradaram na cova. Tá vendo, se seu pai tivesse arrumado o quintal, não teria nada disso. O menino chorou, de tristeza e raiva, da chuva e do pai que não preparou o terreno. Decidiu não fazer nunca o mesmo: criaria o que sobrou como se fosse um filho.
Dez anos e era pai. O que sobrou foi o marrom, o único que não parecia ser da que chocou, mas sua generosidade em dar calor a todo ovo que se apresentava a fez criá-lo até grandinho. Depois do incidente, o pequeno passou a dar mais milho num conforto do luto e, por comerem mais, achou mesmo que sentiam a perda. O marrom se consolou tanto em grãos que cresceu rápido, já do tamanho do pé adotivo. Você vai ficar forte, que nem eu. E o acarinhava na cabeça quando ele o permitia, numa falha breve do instinto pela criação adquirida.
Mas o instinto é sempre mais forte e no primeiro trovão foi logo se esconder num canto. Não pode ficar aí. Pegou o engradado para guardá-lo, porque tentou na mão mas não conseguiu nada além da fuga. Entra aí, levantou a portinhola de metal. Outro trovão, o pintinho se assustou. Pulou mais, encurralado: paredes, menino e nuvens. Tá com veneno o chão, empurrou o engradado pra que ele entrasse forçosamente no vão livre que a portinhola suspensa oferecia. Entrou desesperado e, no estabanar dos novos, deixou cair a porta sobre a cabeça. O miúdo chocado se paralizou. Um corpo marrom de cabeça pênsil se debatia num engradado. NÃO! Não entendeu aquele momento e não reconhecia o fato. Não! O corpo marrom no engradado. Tirou o pintinho que se estrebuchava e tentou repor a cabeça no lugar. Mas estava longe, fora de si, e tudo o que fazia com o corpo era em vão.
A chuva começou a pingar e os cupins saíam da terra. O veneno era forte e já apresentava efeito em alguns pontos. A vida é curta pra quem deseja viver, e na luta, demoraram a se entregar. O menino continuava observando, pequena ave a se mexer, galinho de briga. E veio a água com tudo e soluçou até perder ar. Não sabia que podia matar, descobriu. Filho? Filho, que foi?! Eu ía guardar, mas eu matei! A ave parou e o pai o pôs sob o braço, protegendo da chuva, sem entender direito. O filho só queria isso: proteção, da chuva, do veneno, a proteção do pai. O resto foi sem querer. Descobriu que podia matar e quis se proteger disso também.

quinta-feira, janeiro 01, 2009

# 039

Agora, nova norma entre essas letras,
mas a língua é a mesma aqui no espaço.
É português o vaso; grego ou chinês,
o importante é o vazio.

(... descrever como o que permite do floreio à água?
Por isso como de tudo, de todos mestres do passado)


"
Esta de áureos relevos, trabalhada 
De divas mãos, brilhante copa, um dia, 
Já de aos deuses servir como cansada, 
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que o suspendia
Então, e, ora repleta ora esvasada, 
A taça amiga aos dedos seus tinia, 
Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas, o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce, 

Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas, 
Qual se essa voz de Anacreonte fosse.
"
Alberto de Oliveira


"

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, 
As sensações renascem de si mesmas sem repouso, 
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras! 
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras, 
E os suspiros que dou são violinos alheios; 
Eu piso a terra como quem descobre a furto 
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, 
Mas um dia afinal eu toparei comigo... 
Tenhamos paciência, andorinhas curtas, 
Só o esquecimento é que condensa, 
E então minha alma servirá de abrigo.
"
Mário de Andrade